Por que precisamos conhecer os Kariri-Xocó?
A história desse povo é a prova de que o genocídio e o apagamento colonial não venceram. Os Kariri-Xocó seguem afirmando sua identidade através da música, da espiritualidade e da luta pelo território. Conhecê-los é reconhecer a diversidade indígena do Brasil, que vai além dos estereótipos e revela modos de vida construídos na intersecção entre mundos.
Em tempos de crise climática e devastação ambiental, a cosmovisão dos povos indígenas, e em especial dos Kariri-Xocó, aponta caminhos urgentes: compreender a terra como corpo, defender o território como vida e reconhecer que a preservação da natureza não é uma questão apenas ecológica, mas de justiça histórica e sobrevivência coletiva.

História e Luta
Em 1500, o Brasil tinha entre 3 e 5 milhões de indígenas. Guerras, epidemias e políticas de extermínio reduziram esse número drasticamente. Povos inteiros desapareceram, línguas foram apagadas. No caso dos Kariri-Xocó, desde o século XVIII, muitos foram levados a reduções jesuíticas, obrigados a abandonar seu modo de vida e trabalhar na agricultura. A catequese quase destruiu sua língua que se manteve ocultada dos não indígenas, mas não sua espiritualidade.
Nos anos 1970, esse povo já não possuía mais terras tradicionais: viviam na periferia de Porto Real do Colégio (AL), numa rua conhecida como “rua dos índios”. Eram vistos com preconceito, chamados de caboclos, e sobreviviam com a venda de cerâmica e trabalhos temporários. Foi nesse período que se fortaleceu o movimento de Retomada, a luta para reaver o território ancestral.
O canto e a ancestralidade
A música faz parte da vida e do cotidiano do povo Kariri-Xocó. Seus cantos, os Torés e os Rojões, são memória, resistência e ligação com os ancestrais.
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Os Torés são cantos-dança entoados em rituais e mobilizações políticas. São repetidos coletivamente, fortalecendo o modo de ser indígena.
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Os Rojões são cantos de trabalho, que acompanham a construção de casas, o cultivo da roça ou a produção de cerâmica.
O mais importante de seus rituais é o Ouricuri, realizado em segredo, apenas entre os indígenas. É nele que a comunidade se reconhece como povo e se reconecta à ancestralidade. “Ser Kariri-Xocó é conhecer o segredo do Ouricuri”, dizem.
Território e corpo
Para os Kariri-Xocó, a terra não é apenas um espaço físico: ela guarda relações com o corpo de quem nela vive, como um corpo-território. A cosmologia desse povo rompe com a visão utilitarista da natureza, que a reduz a recurso econômico. Na sua perspectiva, a terra é mãe e fonte de vida sendo inseparável e interdependente dos corpos das pessoas.
O corpo-território é esteio da vida comunitária e da vida ritual, fundamental para a produção de relações saudáveis entre os seres humanos e entre os Kariri-Xocó e seus entes e ancestrais.
Caçadas e sobrevivência
Entre fevereiro e maio, grupos musicais Kariri-Xocó viajam por diferentes estados brasileiros em apresentações conhecidas como “caçadas”. Nelas, cantam, dançam, vendem artesanato e compartilham suas histórias em escolas, centros culturais e eventos públicos.
Mais do que fonte de renda, essas viagens constroem redes de solidariedade e apoio político, fundamentais para a continuidade da luta pela retomada do território tradicional. São uma forma contemporânea de resistência, que une economia, cultura e mobilização.
Os Kariri-Xocó existem e resistem
O povo Kariri-Xocó carrega uma história comum a muitos povos indígenas do Nordeste: a da invisibilidade e da expropriação. Durante séculos, o Estado e a sociedade tentaram apagar sua língua, sua memória e sua cultura. Foram deslocados e empurrados para as margens das cidades. Mas, apesar desse projeto de apagamento, resistiram e seguem resistindo.
Conhecer os Kariri-Xocó é compreender uma outra forma de olhar para o mundo: uma cosmovisão em que terra e corpo não se separam. O território é parte da própria vida, do próprio ser.
